VOLKSWAGEN E ALMAPBBDO - VW BRASIL70: O NOVO VEIO DE NOVO
Mês/Ano Julgamento: AGOSTO/2023
Representação nº: 134/23
Autor(a): Conar, mediante queixa de consumidor
Anunciante: Volkswagen do Brasil
Agência: AlmapBBDO Publicidade e Comunicações
Relator(a): Conselheiro Luiz Celso de Piratininga Jr., com voto divergente de Ana Paula Cherubini
Câmara: Segunda Câmara
Decisão: Arquivamento
Fundamentos: Artigo 27, nº 1, letra "a", do Rice
Resumo: Campanha comemorativa dos 70 anos da Volkswagen do Brasil atraiu queixa de consumidores no Conar e forte repercussão na imprensa e redes sociais - contrárias e favoráveis - ao se utilizar de recursos de inteligência artificial generativa híbrida para recriar a figura da cantora Elis Regina, falecida em 1982, cantando a música "Como nossos pais" junto com a filha, Maria Rita. A campanha, intitulada "VW Brasil 70: o novo veio de novo" foi criada pela AlmapBBDO e veiculada em perfil de redes sociais (Instagram e Youtube).
A representação foi aberta para verificar dois pontos principais:

- se foi respeitoso e ético o uso no anúncio da de Elis e
- se era necessária informação explícita sobre o uso de tal ferramenta para compor o anúncio.

Vinte e um membros da 7ª Câmara participaram da sessão virtual de julgamento, incluindo o presidente da Câmara, que só vota se houver necessidade de desempate. O processo tramitou com o contraditório e ampla defesa, por meio de manifestação de anunciante e agência.
O colegiado considerou, por unanimidade, acompanhando parecer do relator, improcedente o questionamento de desrespeito à figura da artista, uma vez que o uso da sua imagem foi feito mediante consentimento dos herdeiros e observando que Elis aparece fazendo algo que fazia em vida.
Já no tocante à informação sobre o uso da ferramenta, indicando ser conteúdo gerado por inteligência artificial, os conselheiros consideraram as diversas recomendações de boas práticas existentes acerca da matéria, bem como a ausência de regulamentação específica em vigor, e acabaram por concluir, acompanhando a conselheira autora do voto divergente, por maioria (13 x 7), também pelo arquivamento da denúncia, determinando o registro de que a transparência é princípio ético fundamental e que, no caso específico, foi respeitada, reputando que o uso da ferramenta estava evidente na peça publicitária.
Adicionalmente, acompanhando as preocupações com os impactos do uso da inteligência artificial na criação de conteúdos publicitários, foi aprovada moção à direção do Conar para acompanhamento e discussão de casos e recomendações.
Leia a íntegra do voto do relator, Luiz Celso de Piratininga Jr.
Trata-se de representação de ofício, oferecida pelo Conar, baseada em queixas de consumidores, para o exame da campanha "VWBrasil70 - O novo veio de novo", com fundamento nos artigos 1º, 3º, 6º, 8°, 15,19, 27, 34, 37 e Anexo "Q" do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária.
Conforme descrito na inicial, as queixas enviadas submetem ao Conselho de Ética o exame de questão relevante sobre o uso de ferramenta tecnológica e Inteligência Artificial (IA) para a criação de conteúdo publicitário, trazendo pessoa falecida de volta à vida para participar de anúncio.
Sabe-se que a Inteligência Artificial tem implicações generalizadas e de grande escala que estão transformando sociedades e setores econômicos, trazendo benefícios e riscos, sendo seu uso ético crucial para o rumo dessas inovações.
Sobre o uso da imagem de pessoa falecida, integrante do direito de personalidade, ele é regulamentado pelo quadro jurídico em vigor, que prevê serem os familiares os legitimados para a sua proteção e, consequentemente, para o consentimento do uso. Entretanto, não há regra específica sobre a criação de contexto fictício atribuindo movimento, fala, gestos, expressões e declarações à pessoa falecida, por meio de técnica também conhecida como Deepfake.
O que existe são, importantes recomendações éticas para o uso de Inteligência Artificial, ancoradas na preservação da autonomia do ser humano, das pessoas por ela impactadas e afetadas. Assim, além da importante recomendação de ostensiva informação acerca do caráter ficcional do conteúdo, sua criação demandaria pleno consentimento da pessoa retratada. Cabe observar que, nos termos do Código Civil, os herdeiros são tidos como os guardiões do legado da pessoa falecida, o que abrangeria tal consentimento.
As queixas, no entanto, apontam justamente para a violação da autonomia, argumentando que seria necessário o consentimento da própria artista, denunciando, ainda, a possibilidade de que o contexto fictício tenha alterado a expressão de sua personalidade, conforme os diversos apontamentos históricos feitos pelos consumidores. Foram mencionados, assim, deveres morais, éticos e sociais com os falecidos, em particular com os artistas.
Adicionalmente, são apresentados impactos sociais de tal deslocamento. Nos termos do artigo sobre o tema, com depoimento do coordenador do Centro de Inteligência Artificial da Universidade de São Paulo (USP), Glauco Arbix: "[...] há muitos riscos em usar IA de forma não transparente, informada ou consciente, especialmente quando há um deslocamento espacial ou atribuição de declarações inverídicas à pessoa retratada. [...] A finitude da vida está sedimentada na história social. Mesmo para aqueles que creem em vida após a morte, é algo sempre mais inacessível e distinto do que vemos agora, para o que não estamos prontos como sociedade".
Uma das queixas menciona, por fim, a possibilidade de tal uso causar confusão entre ficção e realidade para alguns, principalmente crianças e adolescentes, questionamento a ser examinado à luz do disposto nos artigos 27 e 37 do CBAP.
Dessa forma, a questão foi submetida ao Conselho de Ética do Conar para a análise atenta do presente caso, examinando ser ético ou não o uso de ferramenta tecnológica para trazer pessoa falecida de volta à vida, como realizado no anúncio em tela, à luz do disposto nos artigos acima citados do Código, em particular os princípios de respeitabilidade -, no caso o respeito à personalidade e existência da artista -, bem como do princípio da veracidade.

DEFESA
Preliminarmente, em defesa conjunta, as representadas Volkswagen do Brasil e Almap/BBDO Publicidade:
Contestam a validade da presente representação quanto aos questionamentos pelo uso da imagem da falecida artista Elis Regina na campanha, porque, legalmente, dizem, a exclusividade dos direitos de personalidade da Elis Regina pertence somente aos seus sucessores (que concederam as devidas autorizações às Representadas).
Justificam que tais questionamentos devem ser analisados perante o Poder Judiciário, posto tratar-se de direito personalíssimo previsto em lei específica, direito, esse, não afeto às atividades e finalidade do Conar.
Alegam que a aplicação de efeitos visuais é um recurso tecnológico amplamente utilizado e de inquestionável conhecimento do mercado e aceitação do consumidor.
Finalmente, apontam não existir regulamentação impondo a adoção de qualquer conduta, ressalva ou disclaimer em anúncios que empreguem tal tecnologia.
Após os aspectos preliminares, a defesa apresentou credenciais e breve histórico das empresas, para, em seguida, enfocar o anúncio segundo seu conteúdo criativo, produzido com o emprego da tecnologia digital conhecida como Deepfake: um dueto inédito virtual entre as artistas Elis Regina e Maria Rita, sua filha, cantando a composição "Como nossos pais" (de autoria do compositor e cantor Belchior), ao mesmo tempo em que dirigem Kombis, lado a lado, em cena de lazer e prazer.
A campanha, ressaltam, foi motivada pelo aniversário de setenta anos da marca Volkswagen no Brasil e para o relançamento da Kombi, um dos veículos icônicos da montadora em versão 100% elétrica - batizada ID.Buzz.
Ao longo do dueto virtual, o filme apresenta "cenas de diversos veículos em diferentes eventos de celebração e convívio, destacando a transição das gerações e o fato de que, apesar da natural evolução do ser humano e das tecnologias, os ciclos se repetem, dando ênfase à ideia de que o sucesso passa de geração em geração, no caso, da mãe para a filha e da antiga Kombi para a nova Kombi. Nada mais!".
A defesa ressalta o fato de que "as personagens em momento algum comentam os benefícios dos veículos, suas características técnicas ou performance, tampouco prestam qualquer testemunho sobre o produto ou sobre a marca".
Em relação ao uso da tecnologia digital, as representadas oferecem um histórico de campanhas que se utilizaram de tais ferramentas para fazer reviver personalidades virtualmente, argumentando que o uso da tecnologia Deepfake é lícito e deve ser visto como mais uma evolução técnica para a criação de imagens virtuais, podendo ser considerado ilícito apenas se o conteúdo criado vier a ferir direitos de terceiros e/ou promover uma mensagem ilícita (ou quando lei específica considerá-lo abusivo).
Uma vez que a legislação específica (o que seria o marco legal) sobre o emprego da IA, em âmbito federal, está em tramitação no Congresso Nacional e que até o momento não há obrigação ou até mesmo orientação formal de que se deva informar sobre o uso de recurso de inteligência artificial em publicidades, o anúncio, como alegado pela defesa, é totalmente regular, não havendo que se falar em qualquer alteração no seu conteúdo positivo, considerado respeitoso e saudável no sentido do convívio social e familiar.
Em relação ao direito ao uso desse tipo de imagem, a defesa cita o artigo 5º da Constituição Federal, o qual preserva os direitos de personalidade atribuíveis aos indivíduos; como também, enfoca os artigos 12  e 20 do Código Civil, a partir dos quais depreende que os herdeiros são os legitimados para tutelar a exploração dos direitos de imagem de pessoas falecidas, em que pese não haver no Direito pátrio normas específicas que versem categoricamente sobre a transmissibilidade aos herdeiros de tais direitos. E que, no caso, há o devido consentimento contratual e público por parte dos herdeiros, sendo incontroverso que não há qualquer irregularidade ou abuso no uso da imagem da cantora na publicidade, mesmo que mediante o emprego de tecnologia digital.
No que tange ao aspecto político trazido na reclamação, a defesa afirma não haver qualquer conotação política ou ideológica no contexto da campanha, motivo pelo qual se abstém de realizar maiores considerações quanto a esse ponto.
VW e Almap, tomando por base os artigos do Código citados na representação, especialmente o artigo 37, afirmam não haver razão para considerar o anúncio inapropriado para menores de idade, crianças e adolescentes.
Não há que se falar, tampouco, em afronta ao princípio da respeitabilidade. Pois não há, no anúncio, o favorecimento ou estímulo a qualquer espécie de ofensa, discriminação ou encorajamento a atividades ilegais.
Tampouco há qualquer indício de desrespeito à dignidade da pessoa humana, à intimidade, ao interesse social ou ao núcleo familiar. Muito pelo contrário, o anúncio traz uma mensagem positiva que em nada impacta o legado e o bom nome da cantora, e seu conteúdo foi aprovado e autorizado por seus herdeiros, tudo dentro dos limites da lei.
Por fim, não havendo qualquer irregularidade no anúncio; não havendo legitimidade dos consumidores queixosos para questionar o uso de imagem de Elis Regina, sendo esse direito exclusivo dos herdeiros da cantora; considerando que a discussão relacionada a direitos de personalidade foge do escopo de atuação deste d. Conselho e que não há lei ou normas que estabeleçam regras para utilização ou identificação da inteligência artificial nas publicidades; que o uso de inteligência artificial e efeitos digitais nas publicidades é prática de longa data sem qualquer ressalva ou esclarecimento, estando os consumidores habituados com esse tipo de prática; e que a grande maioria dos consumidores aprovou o anúncio, não compactuando com o posicionamento e interpretação dos consumidores reclamantes, as representadas, respeitosamente, requerem que seja recomendado o arquivamento da representação, conforme preconiza o artigo 27, inciso I, alínea "a" do Regimento Interno deste d. Conselho.

Esse é o relatório.
PARECER E VOTO
Primeiramente, queremos agradecer ao corpo jurídico e operacional do Conar pela costumeira dedicação e apoio. O trabalho tem sido intenso.
De acordo com o contexto jurídico amplo que envolve o emprego da Inteligência Artificial Generativa, como tem sido denominada, e seus reflexos legais, vale frisar que a autorregulação tem como pressuposto a necessidade de que a publicidade cumpra as leis em vigor, conforme expresso no artigo 1º do Código. Esta abordagem do controle misto - a autorregulamentação como camada adicional com previsões normativas e exame ético a partir do necessário cumprimento das regras em vigor - é vastamente consolidada e ocorre na extensa maioria dos países reunidos no Conselho Internacional pela Autorregulamentação Publicitária.
Isso posto, acreditamos que independentemente daquilo que viermos a deliberar, o anúncio em questão já cumpriu missão bastante relevante ao nos oferecer essa oportunidade para refletir sobre os fatos que embalaram a ressurreição virtual da nossa eterna Elis Regina no contexto da ética publicitária.
Ainda antes de entrarmos no mérito das denúncias, dada a profusão de tecnologias digitais baseadas em Inteligência Artificial Generativa que tem brotado diariamente, é importante classificarmos a produção audiovisual do comercial em questão, em sua especificidade, como fruto de uma espécie de Inteligência Artificial Híbrida, termo que vem sendo utilizado por especialistas para distinguir produtos gerados a partir da mistura equilibrada entre ferramentas de Inteligência Artificial e o toque humano, como no presente caso, cujo resultado estético foi planejado e executado por uma equipe plena, humana, com aproveitamentos tecnológicos de Inteligência Artificial para a reconstrução da imagem da face da personagem (interpretada ao vivo por uma atriz) e a sintetização da própria voz da cantora. É disso que se trata.
Assim, relativizamos o papel da tecnologia neste contexto: fosse a representação da cantora no anúncio produzida, por exemplo, por uma sósia (hipótese prevista no Código), por um make-up ou máscara hollywoodianos ou mesmo por antigas técnicas digitais hiperrealistas, o incômodo provavelmente persistiria. Ou seja, não estamos julgando aqui stricto sensu a Inteligência Artificial Generativa em si, mas o resultado de uma representação da imagem da cantora Elis Regina, com alto grau de verossimilhança. Sem prejuízo algum que o aprofundamento da ideia sobre o uso dessa tecnologia já vem merecendo.
Diante disso, delimitamos o objeto das reclamações que foram enviadas ao Conar, em alguns blocos.
O primeiro aspecto da denúncia a ser tratado mostra-se como um pré-requisito para a abordagem dos demais, pois demanda o juízo quanto ao respeito à autonomia e à dignidade da personalidade retratada, falecida. As perguntas básicas são: a imagem da pessoa falecida poderia ser representada no comercial? Considerando que sim, caberia a extensão da pergunta: tal representação foi feita de forma respeitosa?
Para tal reflexão, cuja base do Código encontra-se nos artigos 19 e 34 (que tratam sobre autonomia, dignidade e respeitabilidade), buscamos o apoio nas legislações vigentes.
O direito à imagem é reconhecido como fundamental e inviolável (artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal). Portanto, seu uso demanda consentimento. Já o Código Civil, estabelece (no § único dos artigos 12 e 20) que, no caso de pessoa falecida, os legitimados para a defesa de tal direito são os herdeiros.
De toda forma, é essencial verificarmos o anúncio em relação à novidade do uso em questão. Embora a hipótese de sintetização de imagens de personalidades com movimentos e gestos inéditos não tenha previsão específica na legislação, dos princípios gerais da legislação em vigor, em particular do disposto nos artigos 12 e 20 do Código Civil, é possível assumir o pressuposto no caso de que esse uso está compreendido no escopo do direito à imagem, cuja defesa é atribuída aos herdeiros  Entendemos que os limites da transmissibilidade da herança digital, da memória e do patrimônio existencial é matéria a ser mais bem tratada por lei, com interpretação e aplicação pelo Poder Judiciário. Ainda que considerando ser uso novo, aqui se estipula o parâmetro baseado na doutrina jurídica sobre o tema e, em particular, no exame ético da matéria. .
Note-se que foram apresentados ao menos dois projetos de lei no Congresso Nacional a partir das discussões da campanha publicitária em questão, que levam à mesma solução: a previsão legal expressa de que o uso da imagem de uma pessoa falecida por meio de Inteligência Artificial Generativa requer o consentimento prévio e expresso da pessoa em vida ou, na falta desse consentimento, o dos familiares mais próximos, como ocorreu neste caso, de acordo com as informações prestadas pela defesa das representadas.
Assumimos esse pressuposto quanto à admissibilidade do uso da imagem de pessoa falecida em anúncio publicitário, a partir do consentimento de seus herdeiros (reconhecidos como guardiões do legado da pessoa falecida), do qual faz parte o acting virtual gerado por Inteligência Artificial. Notamos que o uso de imagem de pessoa falecida não é novidade na indústria audiovisual, que vem se ancorando no consentimento dos herdeiros, na falta de disposição testamentária de expressão da vontade do morto.
Entendida como admissível, a representação da imagem da cantora Elis Regina foi projetada de forma respeitosa? Antes de responder à pergunta, é preciso sanar uma objeção trazida pela defesa.
Preliminarmente, as representadas contestaram a legitimidade das queixas de consumidores, apontando que seriam apenas os herdeiros os legitimados para reclamar sobre a violação do uso de imagem da pessoa falecida. Entretanto, não estamos de acordo com esse ponto de vista, dado o fato de que o artigo 34, letra "b" do Código abre claramente a possibilidade de analisar queixas de consumidores por eventual uso desrespeitoso da imagem de pessoa falecida. Conforme o artigo 34: o "Código condena a publicidade que: b. ofenda as convicções religiosas e outras suscetibilidades daqueles que descendam ou sejam de qualquer outra forma relacionados com pessoas já falecidas cuja imagem ou referência figure no anúncio".
Soma-se ao artigo 34, a letra "d" do Anexo Q, sobre testemunhais, segundo o qual "o Anunciante que recorrer ao testemunhal de pessoa famosa deverá, sob pena de ver-se privado da presunção de boa-fé, ter presente a sua responsabilidade para com o público".
Ou seja, como figura de máxima expressão artística, um verdadeiro patrimônio cultural brasileiro, é natural que fãs, amigos e o público, de forma geral, possam exercer com legitimidade a reclamação a respeito dos aspectos do anúncio que de alguma forma incomodaram sob o critério ético.
Nesse sentido, cabe analisarmos se a criação virtual da personagem Elis Regina, em situação fictícia, atribuindo a ela movimento, canto, gestos e expressões, por meio de técnica também conhecida como Deepfake, alterou de forma desrespeitosa a sua personalidade, de acordo com sua memória artística e pessoal.
Entendemos, quanto à respeitabilidade, que o anúncio em momento algum apresentou negativamente a imagem e a memória de Elis Regina, cuja performance virtual se manteve dentro de limites aceitáveis, haja vista figurar todo o tempo cantando ao lado da filha uma canção que fez parte de seu repertório, sem verbalizar qualquer opinião, impressão ou informação e muito menos qualquer tipo de declaração sobre a marca Volkswagen ou sobre seus produtos, ao revés, o que se denota é a utilização de tecnologia atualmente disponível para reproduzir de forma respeitosa gestos, aparência e voz condizentes à pessoa/personalidade de Elis Regina, não sendo forçoso concluir que tais características permeiam a memória coletiva da saudosa artista.
Que pese o absoluto respeito pelas opiniões trazidas nas reclamações, tais afirmações não contêm em seu bojo elementos concretos que possam suscitar a limitação do conteúdo artístico-musical da peça publicitária em comento. Para esse parecer, reputamos que a recontextualização da obra artística aplicada aos objetivos da marca Volkswagen é absolutamente legítima e não fere qualquer princípio ético.
Desse modo, avançamos para o exame, quanto ao mérito, do questionamento sobre a Apresentação Verdadeira e a análise da necessidade de informação (aviso, sinalização) sobre a natureza do conteúdo sintético.
Em seu artigo 27, o Código determina que todo anúncio deve conter uma apresentação verdadeira do produto oferecido, com destaque para o § 9º sobre testemunhais, segundo o qual "o anúncio abrigará apenas depoimentos personalizados e genuínos, ligados à experiência passada ou presente de quem presta o depoimento, ou daquele a quem o depoente personificar".
Nessa perspectiva, é essencial o discernimento daquilo que vem a ser uma apresentação verdadeira do produto e o formato publicitário empregado para tal apresentação verdadeira do produto. Cabe aqui, portanto, tratarmos da linguagem publicitária e suas especificidades para que não haja dúvidas quanto à interpretação do artigo 27.
O entrelaçamento (amálgama) entre os elementos simbólicos da cultura e os produtos de consumo não é nenhuma novidade no ambiente da publicidade. Tais elementos simbólicos, que compõem a cultura nacional em toda a sua extensão e riqueza, são, a priori, matéria-prima do discurso publicitário, sem os quais a argumentação criativa simplesmente não seria possível. Essa característica intrínseca é o que define e distingue a linguagem publicitária como uma expressão artística no contexto da economia de mercado. O anúncio em questão demonstra esse aspecto com propriedade.
A lógica da publicidade é explícita quanto ao propósito de entreter a atenção do público ao qual se dirige e, com isso, incentivar o consumo por meio de comunicação ostensiva. Não há segundas intenções. A intenção é uma só e é reconhecida por todos os que participam dessa dinâmica (anunciantes, agências, mídia e consumidores): favorecer a percepção diferenciada e positiva de marcas, produtos e serviços (e, se possível, o engajamento do público) com o intuito de impulsionar os resultados de venda. O fundamento é econômico: conforme estudo recente da Delloite, a pedido do Cenp, cada real investido em publicidade em 2020 gerou oito reais para a economia brasileira. E a criação publicitária, no contexto da liberdade de expressão comercial, tem sido a "alma do negócio", desde sempre.
O presente caso representa muito bem essa intersecção entre cultura e economia. O jornalista e professor Eugênio Bucci traz uma passagem significativa em seu livro A superindústria do imaginário, obra de notável valor para a compreensão do atual momento comunicacional, na qual cita o filósofo francês Roland Barthes: "o filósofo, que admirava os carros - e morreu atropelado por uma caminhonete de lavanderia, em 1980 -, disse [...] sobre o automóvel: ?Refiro-me a uma criação de época [...] consumida por sua imagem, mais que seu uso, por um povo inteiro que se apropria através dela de um objeto absolutamente mágico?".
Arrisco dizer que o consumo pela imagem do automóvel (bem como de uma infinidade de artigos) tem como razão (ou desrazão) o saudável papel exercido pela publicidade na criação de vínculos por meio de imaginários lúdicos, sua principal especificidade. Aliás, como uma das técnicas fundantes da economia criativa, a propaganda comercial assume, como pressuposto, a capacidade de inovar: apresentar seus argumentos de forma inusitada.
Portanto, não só, mas essencialmente, a publicidade se estrutura como linguagem lúdica. Um espaço no qual praticamente tudo é permitido, desde que respeite os propósitos éticos (estabelecidos pelas legislações em vigor, notoriamente o CBAP) e, evidentemente, a apresentação verdadeira dos produtos e serviços que a patrocinam, num espectro largo de benefícios e identidades racionais e emocionais.
O caso aqui retratado, cumpre, a meu ver, esse papel.
Ao que tudo indica, as representadas ousaram em suas respectivas competências ao produzir e divulgar a propaganda em foco, e como não poderia deixar de ser, é natural que manifestações favoráveis e contra surjam diante de tal ato.
Volkswagen e Almap caracterizam duas instituições de peso no mercado publicitário. Ambas mantêm compromissos concretos com o desenvolvimento da indústria automotiva nacional e com a publicidade de alta qualidade, isso desde os anos 60, tempo em que Alex Periscinoto, sócio de Alcântara Machado (fundador da Almap), assumiu a criação das campanhas da Volkswagen (veiculadas quando o Governo JK promovia o desenvolvimento do transporte rodoviário no Brasil).
Mais que isso, a Volkswagen pode ser tida como uma marca que teve na criatividade publicitária e na qualidade de seus veículos fator determinante para seu grande prestígio internacional. Os anúncios publicitários de seus veículos sempre sinalizaram um padrão de excelência no ambiente da comunicação.
O comercial "VWBrasil 70 anos - O novo veio de novo" não fugiu à regra.
O anúncio é verdadeiro quando articula os conceitos de tradição e inovação, valendo-se do septuagésimo aniversário da empresa no Brasil para lançar o novo modelo do veículo Kombi.
Como argumento criativo, articula os conceitos de tradição e inovação por meio da imagem das cantoras Elis Regina (geração passada) e Maria Rita (geração atual), mãe e filha, cantando em dueto a composição Como nossos pais, enquanto dirigem os modelos - antigo e novo - da Kombi; esse dueto acontece em meio a cenas documentais que têm como função ativar a memória afetiva das pessoas, famílias etc., em relação à marca Volkswagen e seus produtos, lembrando que a marca verdadeiramente fez ou faz parte da vida dos brasileiros há muitas gerações e que, por força de sua capacidade em inovar, transmite esse afeto e confiança de geração em geração, fazendo acontecer o novo (que "sempre vem", expresso na letra de Belchior), de novo. Entendemos, por tudo isso, que a apresentação verdadeira do produto de fato ocorre, nesse caso, por mais lúdica que a peça publicitária possa ser considerada.
Ainda no tocante à interpretação do princípio da apresentação verdadeira e transparência como preceito ético, consideramos mais complexo seu exame, em particular acerca da necessidade de se fazer constar uma sinalização na peça informando sobre o caráter sintético do conteúdo, em função da falta de previsão específica aplicável a esse tipo de tecnologia.
Sabemos que este caso vem ensejando uma série de questionamentos sobre o uso ético destas ferramentas tecnológicas agora à disposição de todos. A criação descentralizada de conteúdo proporcionada pela conectividade e uso de redes sociais, assim como a sofisticação das ferramentas para a produção de tal conteúdo acabaram engrandecendo a presente discussão, conferindo a ela os temores da amplificação dos usos prejudiciais.
Acompanhando os desdobramentos dessa discussão, são diversos os pareceres e orientações que propõem a obrigatoriedade de sinalização preventiva quanto ao uso da Inteligência Artificial no universo das comunicações, aplicável a múltiplos contextos nos quais esse tipo de tecnologia possa figurar, inclusive à publicidade (como no caso do excelente Guia sobre Impactos da Inteligência Artificial Generativa na Publicidade publicado pela ABA e também no caso do Guia lançado pela Federação Mundial dos Anunciantes, bem como em projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional).
Cabe aqui, portanto, a sugestão de adesão a essas diretrizes para a adoção de tal sinalização, disponibilizando informação clara sobre a presença de sistemas de Inteligência Artificial no anúncio, como forma de minimizar qualquer tipo de risco que possa haver na assimilação e compreensão da peça.
Finalmente, analisamos a questão sob o prisma da possibilidade de tal uso causar confusão entre ficção e realidade para alguns, principalmente crianças e adolescentes, conforme estabelecido pelo artigo 37.
Nesse caso, assumimos que o anúncio não contém elementos que possam levar a erro o público infanto-juvenil, tanto pelas razões já apontadas pertinentes à legitimidade da linguagem publicitária, quanto pela evidência de que o comercial não é dirigido a esse segmento da audiência.
Por conseguinte, com base nos artigos 1º, 3º, 6º, 8º, 15, 19, 27, 34, 37 e anexo Q do Código, assumindo as premissas de que: o anúncio é lícito quanto ao respeito à autonomia e à dignidade da personalidade retratada; o anúncio não alterou de forma desrespeitosa a sua personalidade; o anúncio cumpre as exigências quanto a apresentação verdadeira do produto; o anúncio não contém elementos que possam levar a erro o público infanto-juvenil, sugerimos sua alteração no que concerne especificamente a disponibilização de informação precisa sobre a presença de sistemas de Inteligência Artificial no conteúdo da peça.
Esse é o voto.
Em tempo, diante da repercussão e preocupação gerada por este caso, proponho, ainda, moção à Diretoria do Conar, no sentido de analisar a conveniência de estabelecer instância de acompanhamento e discussões acerca das consequências, limitações e implicações éticas, técnicas e normativas trazidas na esteira dos avanços das tecnologias que envolvem inteligência artificial generativa ou híbrida, como tem feito em tantas outras matérias que têm merecido atenção especial, ao lado das entidades nacionais e internacionais que estão se debruçando sobre o tema.
Luiz Celso de Piratininga Jr.
Conselheiro Relator

REGISTRO DE VOTO DIVERGENTE, REPRESENTAÇÃO Nº 134/23
Adoto relatório elaborado pelo ilustre conselheiro relator do processo em epígrafe, no qual consta pormenorizada alusão às alegações de denúncia e de defesa.
Entretanto, dele divirjo no tocante à recomendação de alteração relacionada à sinalização do uso da ferramenta tecnológica.
Registrando desde logo o acerto e a excelência do voto, ao exprimir detalhado exame dos aspectos de criação da mensagem publicitária e do uso legítimo e adequado da imagem da icônica cantora Elis Regina, esclareço a seguir a divergência ora apresentada.
Dois pontos foram indicados como centrais na presente representação:
I) Se o uso de vídeo com imagem da cantora teria sido legítimo e respeitoso, o que demandou a análise da observância dos preceitos legais e da autorregulamentação relacionados à autonomia e à dignidade da personalidade retratada; e
II) Se o anúncio atendeu aos princípios de veracidade, transparência e direito à adequada informação.
Com relação ao primeiro ponto, acompanho integralmente o voto do i. relator, reputando ter sido legítimo e respeitoso o uso da imagem da cantora, tendo presente o consentimento dos guardiões de seu legado - os herdeiros - e considerando que o uso foi absolutamente coerente com sua memória e atividade realizada em vida, de inesquecível e única performance artística e apresentação musical.
Já no tocante ao segundo aspecto, após longa discussão e acurada análise, reputo que o caso em tela deve ser examinado diante do contexto legal e da autorregulação, da segurança jurídica e, sobretudo, do impacto do anúncio.
Ainda que considere fundamentais as discussões sobre princípios éticos relacionados ao uso da Inteligência Artificial na criação de conteúdos audiovisuais, reconhecendo os desafios e o relevante papel que este Conselho tem em nortear as difusas orientações atualmente existentes acerca da matéria, não reputo que a campanha merece reparo sob os aspectos de veracidade e transparência, tanto da oferta, quanto dos elementos criativos e ficcionais.
Pela própria notoriedade da cantora, e do conhecimento público de sua precoce partida deste mundo, é inequívoco o uso da tecnologia no presente caso. Em que pesem as críticas - que fazem parte do sistema democrático - o anúncio recria uma cena que, não fosse a tecnologia, o público jamais poderia vivenciar.
E não há, em momento algum, qualquer condão de enganosidade ou falta de transparência, haja vista que a tecnologia aqui é utilizada única e exclusivamente para recriar Elis Regina fazendo o que - e como - fez em vida, sem desvios.
O princípio da transparência, que deve prevalecer em todas as comunicações e relações com os consumidores, se faz presente neste caso em particular, sendo desnecessária e ineficaz, a ressalva acerca do processo criativo do anúncio. Por esse motivo, respeitosamente divirjo do ilustre conselheiro relator quanto à recomendação exarada, de sinalização do uso da ferramenta tecnológica, recomendando também neste ponto o arquivamento da representação, com fundamento no disposto no artigo 27, item I, letra ?a?, do Rice.
Ao recomendar o arquivamento, considero a ausência de regulamentação específica apta a impor obrigatoriamente tal inserção, o que demanda uma análise ainda mais criteriosa de contexto específico do anúncio à luz dos princípios éticos publicitários, a saber, a transparência, apresentação verdadeira e o direto à informação, os quais não verifico terem sido infringidos.
Por fim, mas não menos importante, deixo consignado dois pontos bastante enfatizados na discussão do caso.
O princípio da transparência é fundamental para o uso dos recursos tecnológicos na publicidade, conclamando a atenção dos envolvidos nas cadeias de criação, para observá-lo de forma central.
E, acompanhando a proposta do Relator, diante das preocupações com os impactos do uso da inteligência artificial na criação de conteúdos publicitários, me uno à proposta de moção à direção do Conar para acompanhamento e discussão de casos e recomendações que possam orientar os atores envolvidos e conferir segurança jurídica no exercício de suas atividades e na salvaguarda de direitos.
Ana Paula Cherubini